A reclusão traz possibilidades de revisões sobre o que nosso corpo diz — e o que dizem sobre ele
Eu passei alguns anos sem um espelho de corpo inteiro em casa. Era incômodo em alguns aspectos, não conseguir checar se a roupa está certa, se o sapato combina. Quando eu conseguia ver tudo, geralmente na casa de amigos, acabava pensando que era melhor não ter espelhos grandes, mesmo.
Aquela visão de uns quilos a mais é especialmente forte quando você é um homem e esses quilos estão dispostos proeminentemente no peito, em formatos redondos que gritam o que você é e o que você não é ao mesmo tempo. Trans. Cis.¹
Seios, quadril, cintura, tamanho da mão, curva do rosto, cabelo, pelo, tudo fica muito claro quando você olha por tempo o bastante (ou tempo demais). Alguns atributos requerem minutos, outros só alguns segundos e é o suficiente para que o cara do outro lado do balcão da padaria diga “algo mais, moça?”. E quem disse que é um cara, mesmo?
Eu me mudei este ano, coloquei minhas coisas no apartamento novo ao mesmo tempo em que fechava as portas para o mundo exterior: chegou a pandemia. Memes na internet. Pedidos online. Clientes encerrando contratos. Saudades dos amigos.
E então um espelho. Não meu, mas da pessoa com quem divido o aluguel, que comprou uma sapateira tamanho família com um espelho enorme que vai da cabeça aos pés, de uma coxa à outra, sem deixar nada escapar.
Na maior parte do tempo, ele só está lá, trancado no quarto que não me pertence. Mas, às vezes, eu me pego olhando. Analisando o quanto deixei o cabelo crescer, ou como engordei, ou como os seios parecem maiores em algumas camisetas, ou como a barba está crescendo rápido apesar de ninguém ver isso por trás das máscaras quando me aventuro do lado de fora.
Não odeio nem adoro esse espelho. Não sei muito bem o que vejo ali. Talvez eu esteja perdendo uma oportunidade de redescobrir o que se destaca em mim. Parece algo que li em um artigo² de Naveen Kumar, para o them., que diz que a quarentena é um bom momento para reorientar a expressão de gênero.
É uma análise complexa que realmente se beneficia de meses de isolamento social. O quanto da sua expressão é determinada por você, e quanto é determinado pelo modo como você quer que as pessoas reajam? Algumas reações são mais fáceis de antecipar do que outras. Eu sei que usar uma roupa justa, sem binder³, vai fazer com que eu seja lido como uma mulher. Sei que ostentar uma barba ajuda no caminho contrário.
O problema é que definir suas expressões pela visão dos outros é limitante e profundamente injusto. Pessoas trans se acostumam a se condicionar para ter respeito e, muitas vezes, deixam de avaliar o que é ou não condicionado. É algo que se vê facilmente em paralelos apontados por movimentos feministas, como as performatividades de gênero4, e pelo movimento LGB, como a heterossexualidade compulsória5.
Em todos esses casos, os grupos majoritários da sociedade aplicam e replicam o que consideram como regra de comportamento e expressão. Isso se perpetua por gerações e exige muito mais para ser revisitado do que foi para ser implementado. É mais difícil retirar das nossas mentes o que foi apresentado como consenso, mesmo quando descobrimos que isso não é — e nunca foi — verdade.
A pergunta, que já havia surgido com esses questionamentos antes, mas ficou ainda mais latente em 2020, é: o que eu quero deste corpo? Não das pessoas na rua, na faculdade, no trabalho, na balada. O que eu quero do meu corpo?
Não há uma resposta simples quando falamos de disforia. O próprio conceito é patologizado, considerado obrigatório por muitos profissionais da saúde para que alterações corporais sejam permitidas aos pacientes trans. Afinal, você precisa estar sofrendo para ter o direito a uma cirurgia ou à terapia hormonal. Não basta o desejo, o reconhecimento e a liberdade — espera-se a dor para que sua identidade seja validada.
De tanto ouvir isso, é difícil compartimentalizar. Você não separa a dor de ser desrespeitado em público da dor de olhar para baixo ao tomar banho. Não sabe se há uma diferença, ou mesmo se existem sofrimentos distintos e não apenas uma extensão de um ou outro. Sua vida é constantemente enfrentar os olhares, tentando ou não evitá-los, sempre sabendo que estão ali.
Exceto quando é só você e o espelho.
É claro que, para muitas pessoas, estar em casa não significa ter tempo para entender novos aspectos sobre gênero e corpo. Para pessoas trans, principalmente, estar em casa pode ser ainda mais sufocante do que sair pelo mundo. A quarentena não funciona da mesma maneira para todos, então eu não posso esperar que essas análises façam sentido para todos. Mas sei que funcionam para alguns.
Uns e outros por aí já fizeram as pazes com o corpo que têm, outros ainda não conseguem nem olhar sem sentir tremores arrepiando os pelinhos, dos mais queridos aos mais indesejados. De todo modo, há sempre uma relação consigo mesmo que depende parcialmente da forma como nos apresentamos. Ainda que suas maiores preocupações sejam outras — e nem tem como não serem, em uma pandemia, lidando com um governo assassino, enfrentando grupos pró-morte de crianças em prol de fetos —, mesmo assim, você está aí dentro, e isso é tudo que você tem.
Não consigo ressaltar o suficiente o quanto o relacionamento que cultivamos com nossos corpos vai além de uma positividade forçada. É uma questão de saúde. Um homem trans que não suporta toques íntimos não vai ao ginecologista. Uma mulher trans consciente demais das próprias proporções segura o xixi para não enfrentar o drama do banheiro público. Esses pontos precisam receber muito mais atenção do lado de lá, naturalmente; ginecologistas precisam aprender a lidar com homens e suas vaginas, e banheiros públicos, bem, esse é um debate antigo e repetitivo. Meu ponto é que o lado de cá também existe e é o único que podemos controlar.
Enquanto lutamos para que a sociedade nos veja apesar dos nossos corpos, há uma luta interna para nos vermos a partir dos nossos corpos. Volto a questionar: o que eu espero deste lugar que habito?
O espelho não está me mostrando uma silhueta feminina, quem vê isso está do lado de fora da minha casa. Eu vejo pele e curvas que me abrigam, um corpo trans, não cisgênero, não feminino, talvez nem masculino. Cada olhar é difícil, e também reconfortante; eu percebo que ainda não consigo encarar os seios por muito tempo, mas não vejo problemas no quadril. O formato do rosto às vezes incomoda, mas não o que está (ou não está) entre as pernas. A exploração é mais fácil, pouco a pouco, quando estou sozinho.
A vida voltará ao normal e os olhares continuarão pesados, diariamente, medindo e impedindo minha presença em lugares em que eu tenho todo o direito de estar. O que eu espero é apenas que, depois de tanto tempo comigo mesmo, eu consiga encarar esses olhares com mais confiança e dizer, ei, o problema é seu. Você não decide nada sobre a minha carcaça. Ela só tá existindo, e eu também.
1. Ver explicação sobre o termo cisgênero feito por Beatriz Bagagli no site Transfeminismo.
2. Naveen Kumar, “How Quarantine Can Help You Learn to Accept Your Body and Gender Identity”. them. Acesso em 17.08.2020.
3. Binder é um tipo de tecido ou peça confeccionada com o propósito de pressionar e esconder ou minimizar a proeminência dos seios.
4. Ver análise do feminismo de Judith Butler realizada por Marcia Tiburi para a revista Cult.
5. Ver análise do artigo de Adrienne Rich, “Compulsory Heterosexuality”, realizada por Elisete Schwade para a revista Bagoas – Estudos Gays: gênero e sexualidades.